Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de maio, 2023

Filme: Boa sorte, Leo Grande

  Filme: Boa sorte, Leo Grande A profundidade desse filme me impactou.  Diria que homens e mulheres deveriam assistir com o mesmo olhar atento, mas quase impossível, dada a natureza. Trata-se de uma viúva e aposentada. Viúva há dois anos, após longo casamento monótono, onde somente seguiu o fluxo como mulher triste. Aposentada como professora de religião, frustrada pelas próprias convicções ensinadas. Ela então desperta para a chama do org@smo que nunca teve. Entre outras coisas no se&o. Contrata os serviços de um garoto de progr@m@ para sentir, viver e aprender tudo o que seu corpo foi criado para receber. Com maestria nas atuações e incrível sensibilidade no texto, o filme se desenrola em alguns encontros dos dois. Nela, o que mais me tocou foi a representatividade de tudo e de todas as mulheres.  Não importa a idade: você se conhece se&ualmente? Você tem pudor, sozinha, entre quatro paredes? Você é anulada pelos preconceitos se&uais do seu companheiro? Nele, a beleza fic

Coisas criam memórias - blusa do meu pai

  Coisas criam memórias - blusa do meu pai Após mais um dia frustrante vendo meu filho se machucar sucessivas vezes involuntariamente e minhas cólicas com pernas pesadas sem trégua, tive que sair para comprar algumas coisas, ao anoitecer. Frio de outono, abro o armário e essa blusa está lá no cantinho, dobrada como a deixei há uns cinco meses. Ela era do meu pai. Quis vesti-la imediatamente. Quis o calor de sua linha para aquecer. Quis o conforto de seu tamanho grande. Quis o toque do tecido que sentia ao tocar meu pai enquanto a usava. Quis sentir seu cheiro adocicado por diabetes (sim, não lavei). Então a vesti. Caramba! Tudo que queria, aconteceu em segundos. Veio forte porque sinceramente não lembrei muito dele nos últimos dias. E tanto faz: lembrar ou esquecer é ruim. Vesti e a saudade me vestiu também. Talvez mais lembranças do final do que saudade. Dirigindo, engarrafamento, belas músicas antigas no rádio e já não enxergava direito pelos olhos marejados . Tantas memórias! Jan

Conto: Hábito de lambedura

  Conto: Hábito de lambedura Minha mãe teve muitas empregadas, ou tentativas de ter. Não eram para casa, mas para ajudarem nas tarefas da lanchonete que tínhamos. Tudo muito simples, menos o capricho de minha mãe. Primorosa e orgulhosa o bastante para não admitir coisas mal feitas. Mantinha tudo muito limpo, mesmo nada sendo lá de alguma beleza.  Fazia todos os quitutes oferecidos: salgados, carnes, refeições, café, queimadinha (açucar caramelizado com leite e canela) e tanto mais. Quem comia uma vez, virava freguês. Como ela sempre disse: "não existe comida gostosa sem capricho". A luta era grande e pesada. Ela acordava às quatro da manhã todos os dias e só descansava aos domingos. Quando terminava as demandas do bar, lá pelas 18h, ainda passava roupas antes de dormir. Precisava mesmo de ajuda. A bendita e desejada empregada nunca dava certo. Porcas, irresponsáveis, ladras (infelizmente). Aparecia de tudo. O bar ficava na frente do lote e nossa casa nos fundos, numa avenida

Mulher Deprimida

Mulher Deprimida Quando estou deprimida , mas de verdade, tenho vontade de jogar todas as plantas vivas que tenho no lixo. Fiz isso uma vez. É interessante que nas poucas vezes em que me deprimi de verdade, as plantas não estavam bem. Estavam querendo morrer , feias. Parece até causa e consequência: eu e elas. Fui ficando mal e elas também. Talvez meus cuidados tivessem diminuído. O problema é que quando se está doente , precisa-se de ajuda. Dificilmente há vontade de ajudar alguém, ou algo. E em períodos difíceis , as plantas ficam em desvantagem de prioridade frente a todo o resto. Mas voltando à vez em que fui má, foi assim: Eva estava em minha casa, uma querida. Ia uma vez por semana limpar tudo. Com aquele ar de dia de faxina, senti ímpeto de tirar pelo menos aquela obrigação da minha vida: cuidar das plantas. Senti urgência em fazer e falei com Eva: "bota tudo no saco preto". Alma boa que Eva era, teve dó, compadeceu pelas plantas. E morreu de rir. Disse que eu realmen

Conto: Barato do meu cachorro

  Conto: Barato do meu cachorro Eu nunca fumei . Nada, de nenhuma planta ou veneno. Lembro do ditado que diz que então morri, porque também não bebo nem cheiro. Por honestidade, que conste: bebo vinho eventualmente. Então, pelo ditado, ainda presto pra alguma coisa. Mas a história é sobre uma amiga que bebe e fuma (planta). Essa bela adormecida (pra não dizer outra coisa), inventou de pedir demissão e morar na Austrália. Despedida Eis que para ir embora (morava sozinha) teve que desfazer de tudo, até só restar o que coubesse em duas malas. Ao final de todo desapego, em sua últtima noite no Brasil, ela dorme em minha casa. Naquele clima de despedida, uma terceira amiga se junta para ajudar na organização da bagagem e darmos adeus num jantar que fiz com carinho (lasanha à bolonhesa). A descoberta Eu na cozinha, passava de vez em quando pelo quarto onde estavam, quando em dado momento avistei um cigarro de planta num nicho baixo da parede. A amiga, futura australiana, caiu na risada e di

Conto: Morto-vivo

Conto: Morto-vivo Tinha uma auxiliar de serviços gerais na empresa. Creuza. Era daquelas pessoas sorridentes, alegres, tinha inteligência e perspicácia que logo se notava. E era feia, muito feia. Aquela feiura que a gente acostuma e que se camufla pelo bom papo e alto astral. Era alta, muito magra, curvada. O rosto tinha formato diferente de todas as possibilidades comuns, como se fosse uma anomalia - mistura de quadrado e retangular, e largo. Olhos muito espertos e vigilantes, sempre curiosos, harmônicos. Nariz delicado, sempre arrebitado enquanto andava. E tinha sardas. A boca afundava no maxilar que era exageradamente pra frente. Seu bom humor sempre presente nos aproximou. Sempre que possível, almoçávamos ou lanchávamos juntas. Papeávamos até. Falava em namoros, pretendentes e sobre seus planos de futuro de ser bem sucedida profissionalmente. Ela também tinha algo de misterioso, parecendo coisa de quem é observador e crítico demais. A empresa era num shopping e certa vez, enquanto

Dó de dormir

  Dó de dormir Tenho dó. Morro de dó de dormir . Não era assim antes, quando dormia até mesmo antes de deitar. Hoje, com poucos dois ou três momentos de solidão tão queridos e desejáveis por dia, tendo a não querer desperdiçar um deles. Dois sei quais são: o banho da noite, quando estou só eu e o barulho do chuveiro que agoniza de tão quente e abafa os ruídos de fora que me cansam. Outro é quando todos adormecem . Meu cachorro então, por hábito, reinvindica o direito adquirido de subir em minha cama e ali ficar até a hora que eu decidir dormir e colocá-lo em seus aposentos. Quanto ao grande momento que não quero desperdiçar, é que sinto tamanha liberdade quando filho e marido adormecem. Meu quarto e às vezes a sala de televisão se tornam refúgio tal como o banho. Costumo querer ser produtiva nesse momento, à noite. Esse momento que dura até os olhos arderem demais. O ruim de não controlar isso é que quanto mais estica o elástico, maior ele fica. Então, se me deixar levar por essa

Relicários de Amor

Relicários de Amor Somos relicários , grandes e repletos relicários. Se não sou ainda, devo procurar ser, urgente. Uma vida deve ser lembrada, valorizada dentro da joia . Sou a joia. Não posso ser vazia, não posso deixar que seja. Se bem que quase não há como ser vazia, se o que tem dentro é a própria vida que passou. O que tem dentro são os restos de mim que sobraram até ontem. Talvez não pare para olhar. Aí então nada se vê mesmo. Num relicário tudo pode ser acolhido . Como se fosse um talismã , normalmente só partes boas são colocadas. Se for sobre sorte, que a parte difícil da caminhada seja lembrete, alerta. Se for sobre mais que isso, que tudo esteja dentro. Tudo me trouxe aqui. Que eu saiba fazer conta direito e que o resultado final, somando e subtraindo, seja positivo. Que eu seja por fim, um relicário de amor . Que ele seja exibido com orgulho e sonhos ainda por vir. Não é de pendurar no pescoço. É de se ser. Transparecer o que tem dentro. Ambulante. Um relicário ambulante.