Coisas criam memórias - blusa do meu pai
Após mais um dia frustrante vendo meu filho se machucar sucessivas vezes involuntariamente e minhas cólicas com pernas pesadas sem trégua, tive que sair para comprar algumas coisas, ao anoitecer.
Frio de outono, abro o armário e essa blusa está lá no cantinho, dobrada como a deixei há uns cinco meses. Ela era do meu pai.
Quis vesti-la imediatamente. Quis o calor de sua linha para aquecer. Quis o conforto de seu tamanho grande. Quis o toque do tecido que sentia ao tocar meu pai enquanto a usava. Quis sentir seu cheiro adocicado por diabetes (sim, não lavei).
Então a vesti. Caramba!
Tudo que queria, aconteceu em segundos. Veio forte porque sinceramente não lembrei muito dele nos últimos dias. E tanto faz: lembrar ou esquecer é ruim.
Vesti e a saudade me vestiu também. Talvez mais lembranças do final do que saudade.
Dirigindo, engarrafamento, belas músicas antigas no rádio e já não enxergava direito pelos olhos marejados.
Tantas memórias! Janelas killers e lights (veja Augusto Cury).
Ele amava essa blusa, a cor clara o atraía devido o daltonismo.
Nossa última foto foi pouco antes de partir, enquanto nos despedíamos em minha casa e a vestia.
Nessa última visita que me fez, tudo estava diferente nele. Doente e não sabíamos.
Percebi tantas coisas assim que chegou. A morte estava se apresentando pra mim, em silêncio.
E à medida que ela se apresentou, ficou claro a finitude próxima, mesmo que sem dados concretos. Coisa de sensibilidade.
Que roupa vestir?
Sobre a blusa, ainda teve um último momento sobre ela.
Já na casa dos meus pais, meu pai falecido na madrugada, pela manhã chega o pedido da funerária: enviar as roupas para o sepultamento.
Cheguei a escolhe-la (a blusa) para esse fim. Uma pesarosa e perturbadora sensação passeia pelo corpo.
Inocente, sem experiência em perder as poucas pessoas que amo, perguntei: "sapatos também?" Não, não eram necessários.
Escolhi a blusa para agradar meu pai, como a escolha de um presente. Vaidoso que era, qual iria querer? Pensei nela, ele gostava, sentia aquecido e bonito.
Depois pensei e minha mãe arrematou a mesma ideia: "ele gostava tanto, fique com ela pra você."
Em um momento seria enterrada como agrado e beleza, consumida pelo pó da vida e morte. Em outro se tornaria uma bela lembrança em minhas mãos.
Não que sejam dignas de pedestais pagãos, mas as coisas têm importância. Objetos, músicas, sabores que vivenciamos com bons momentos, geram boas janelas de memórias. Bons lugares para visitar.
Dirigindo ainda pensei em todos que perderam alguém.
E queria dizer que sinto muito.
Ludmila Barros 🔗 ludmilapb
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