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Conto: Barato do meu cachorro

  Conto: Barato do meu cachorro Eu nunca fumei . Nada, de nenhuma planta ou veneno. Lembro do ditado que diz que então morri, porque também não bebo nem cheiro. Por honestidade, que conste: bebo vinho eventualmente. Então, pelo ditado, ainda presto pra alguma coisa. Mas a história é sobre uma amiga que bebe e fuma (planta). Essa bela adormecida (pra não dizer outra coisa), inventou de pedir demissão e morar na Austrália. Despedida Eis que para ir embora (morava sozinha) teve que desfazer de tudo, até só restar o que coubesse em duas malas. Ao final de todo desapego, em sua últtima noite no Brasil, ela dorme em minha casa. Naquele clima de despedida, uma terceira amiga se junta para ajudar na organização da bagagem e darmos adeus num jantar que fiz com carinho (lasanha à bolonhesa). A descoberta Eu na cozinha, passava de vez em quando pelo quarto onde estavam, quando em dado momento avistei um cigarro de planta num nicho baixo da parede. A amiga, futura australiana, caiu na risada e di

Conto: Morto-vivo

Conto: Morto-vivo Tinha uma auxiliar de serviços gerais na empresa. Creuza. Era daquelas pessoas sorridentes, alegres, tinha inteligência e perspicácia que logo se notava. E era feia, muito feia. Aquela feiura que a gente acostuma e que se camufla pelo bom papo e alto astral. Era alta, muito magra, curvada. O rosto tinha formato diferente de todas as possibilidades comuns, como se fosse uma anomalia - mistura de quadrado e retangular, e largo. Olhos muito espertos e vigilantes, sempre curiosos, harmônicos. Nariz delicado, sempre arrebitado enquanto andava. E tinha sardas. A boca afundava no maxilar que era exageradamente pra frente. Seu bom humor sempre presente nos aproximou. Sempre que possível, almoçávamos ou lanchávamos juntas. Papeávamos até. Falava em namoros, pretendentes e sobre seus planos de futuro de ser bem sucedida profissionalmente. Ela também tinha algo de misterioso, parecendo coisa de quem é observador e crítico demais. A empresa era num shopping e certa vez, enquanto

Dó de dormir

  Dó de dormir Tenho dó. Morro de dó de dormir . Não era assim antes, quando dormia até mesmo antes de deitar. Hoje, com poucos dois ou três momentos de solidão tão queridos e desejáveis por dia, tendo a não querer desperdiçar um deles. Dois sei quais são: o banho da noite, quando estou só eu e o barulho do chuveiro que agoniza de tão quente e abafa os ruídos de fora que me cansam. Outro é quando todos adormecem . Meu cachorro então, por hábito, reinvindica o direito adquirido de subir em minha cama e ali ficar até a hora que eu decidir dormir e colocá-lo em seus aposentos. Quanto ao grande momento que não quero desperdiçar, é que sinto tamanha liberdade quando filho e marido adormecem. Meu quarto e às vezes a sala de televisão se tornam refúgio tal como o banho. Costumo querer ser produtiva nesse momento, à noite. Esse momento que dura até os olhos arderem demais. O ruim de não controlar isso é que quanto mais estica o elástico, maior ele fica. Então, se me deixar levar por essa

Relicários de Amor

Relicários de Amor Somos relicários , grandes e repletos relicários. Se não sou ainda, devo procurar ser, urgente. Uma vida deve ser lembrada, valorizada dentro da joia . Sou a joia. Não posso ser vazia, não posso deixar que seja. Se bem que quase não há como ser vazia, se o que tem dentro é a própria vida que passou. O que tem dentro são os restos de mim que sobraram até ontem. Talvez não pare para olhar. Aí então nada se vê mesmo. Num relicário tudo pode ser acolhido . Como se fosse um talismã , normalmente só partes boas são colocadas. Se for sobre sorte, que a parte difícil da caminhada seja lembrete, alerta. Se for sobre mais que isso, que tudo esteja dentro. Tudo me trouxe aqui. Que eu saiba fazer conta direito e que o resultado final, somando e subtraindo, seja positivo. Que eu seja por fim, um relicário de amor . Que ele seja exibido com orgulho e sonhos ainda por vir. Não é de pendurar no pescoço. É de se ser. Transparecer o que tem dentro. Ambulante. Um relicário ambulante.

Ir devagar

  Ir devagar Dirigindo ela busca permanecer atrás de quem vai devagar . Atrás daqueles que a maioria quer ultrapassar . Um lugar que parece confortável para pensar menos . Ela precisa disso. A mente lenta , cansada, o corpo parece de outra pessoa. Tristeza plantada no coração enraíza por todo canto, como erva daninha . E ao mesmo tempo que sabe de onde vem, também não sabe. Uma melancolia chata. Só sabe que agora, ali, quer demorar mais a chegar. Só quer ir devagar. Ludmila Barros 🔗 @ludmilapb

Mãe por perto

Mãe por perto Minha mãe chega e preenche meu ser e o ar com prontidão. Faz dissipar preguiça, procrastinação e lamúrias que possam existir. Além de ser minha mãe , o que quer dizer tudo de onde vim , é também um ser humano admirável . Seu vigor é nato pelo provento e pelo trabalho. Vindo de onde veio, das dificuldades como dividir um ovo com os irmãos e usar folhas de pão como caderno, é uma vencedora . Vencedora não por riquezas financeiras acumuladas, mas pela forma admirável que passa pela vida e por cada luta, sempre com fé em Deus e no esforço próprio. Ela me faz sentir vergonha e me mexer na cadeira. Como quando você está na sua grande zona de conforto, esparramada na cadeira de trabalho e chega alguém com autoridade em energia. Uma bela mulher de Provérbios, que tanto admiro e tento ser com pernas bambas e mais erros que acertos. Aliás, sobre esse assunto, mulher de Provérbios, super recomendo o conteúdo de minha amiga e psicóloga Aline Rodrigues . Uma mulher que por fim perde

Conto: O Beco

Conto: O beco Ele acordou cedo, ainda cinco horas da manhã, mesmo sendo domingo.  Mais um dia com as mesmas coisas e após ler rapidamente as notícias pelo celular, preparou seu primeiro café da manhã seguido da alimentação e medicamentos do filho que ainda dormia tranquilamente.  Ligou a bomba de nutrição que o alimentaria pelas próximas duas horas e medicou. Deixou-o ainda em sono gostoso. Sabendo que a esposa dormia ainda, porém atenta, Júlio calçou seus tênis, vestiu roupas leves e seguiu para seus exercícios na academia que não era tão perto, mas dessa vez decidiu caminhar até lá. Com os pés no chão é possível perceber melhor. Tudo fica nítido e presente. Coisas que pareciam não existir, tomam forma e chamam atenção pelo caminho. Lojas, pessoas, detalhes do calçamento e o céu. Quase no meio do percurso avistou num beco longo e sem saída do outro lado da rua , um casal jovem que se beijava apaixonadamente. Pareciam corpos e rostos de quem passara uma boa noite de festa e intimidade

Pai, avô e neto

Pai, avô e neto Quando meu pai faleceu , eu, meu filho Renan e meu marido Emerson já estávamos há dias na cidade dele. Já não estava bem. Naquele turbilhão todo que a morte faz, mesmo que calma, teve a perspectiva do Renan. Pelo menos tenho a minha versão disso. Foi interessante porque vínhamos de um ano difícil sobre o comportamento do nosso pequeno. Muito choro e indisposição sem explicações. Eis que ficamos 45 dias na casa dos meus pais e em todo o tempo, como um milagre, e acredito mesmo que seja, Renan ficou quieto, calmo como não contemplávamos há muito tempo. Eu me lembrava que tinha que conversar com ele sobre seu avô , mas deixava para depois, enquanto estava ocupada com uma coisa aqui e outra ali. E sabia que ele tudo ouvia e via. Participou de tudo. Eu estava devendo uma conversa. Até que após o falecimento , ele passou a demonstrar reações emocionais enquanto escutava conversas sobre o avô. Fazia beicinho e até chorou com lágrima silenciosa. Tem que explicar Eu então me

Mãe guerreira

 Mãe guerreira "Nossa Ludmila, vocé é uma mãe guerreira , viu?" Uma vizinha querida me disse essa frase enquanto aguardávamos o elevador.  Não foi a primeira vez que ouvi isso nos últimos onze anos, mas dessa vez parece que prestei mais atenção e percebi algo diferente. Já mencionei sobre essa expressão em alguns posts no Instagram, levantando a questão de frases feitas que podem  romantizar situações ou simplesmente serem termos que de nada valem. Não que me incomode ser chamada assim, longe disso. Geralmente percebo empatia  genuína pelo locutor.  Na verdade também tenho um pouco de ranço de regras demais em torno do que se pode falar hoje em dia. Até onde tem respeito , meus ouvidos e meu coração não se incomodam. Sobre romantizar Mas pra quem está aqui nessa  leitura , sobre romantizar, que também me parece verbo da moda, soa como camuflar um mundo que não é encantado.  Dizer que a mãe de uma criança com deficiência  é guerreira, é especial, é iluminada, é um ser melhor

Colorir e a vida adulta

Colorir e a vida adulta Há uns sete anos, lembro de deixar o livro de ilustrações com o lápis roxo na bancada da cozinha, enquanto tentava alimentar meu filho , com dificuldade (o que era rotina e estressante).  Recorria ao livro entre uma tentativa frustrada e outra, como quem deixa ali um pote de doce para aliviar a fome da tensão, enquanto não se pode parar o trabalho.  E eu me desconectava por alguns segundos, talvez minutos, colorindo mais uma pequena parte daquela página. E voltava ao trabalho. E coloria . E voltava ao trabalho. Quando começa O lúdico da infância e seu descompromisso com o perfeito deixaram esse gosto e apetite frescos na memória. Porém, até bem adulta , não colori mais. Apenas gostava muito. Sempre me lembrei da mesa de mogno bem preta em que estudava e coloria até lá pelos meus onze anos. Vagava por livrarias só pra sentir os aromas. Então, uma autorização para ser criança tinha surgido no mundo. Os livros de colorir para adultos viraram moda e fui